sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Tchau, Chácara

**Escrevi essa quando a chácara foi vendida, no fim do ano passado.

Titia ligou uma noite dessas para falar que a chácara tinha sido vendida. A notícia doída que encheu meus olhos de lágrimas foi a mais triste dos últimos tempos. Na bem da verdade, não foi nenhuma surpresa porque meus tios tentavam a venda há tempos. Mas eu sempre tinha aquela esperança no fundo do peito de que isso não aconteceria. Um bilhete premiado, um tesouro enterrado no fundo da horta, um poço de petróleo descoberto sem querer, um milagre.

A esperança, que nem sempre vence o medo, foi-se junto com uma transferência bancária feita pela ex-mulher do apresentador da Record, Celso Freitas. Eu sabia que, no máximo, ele tinha uma ex-mulher bem amarga, já que o homem é viciado em sinuca e está todo santo dia no Atlanta, até a uma da manhã. Família estruturada ele não podia ter. Humpf!

Logo, a chácara estará transformada em um moderno Pet Shop, com hotel para cães e tudo. Mas duvido que os cockers, os llasas, os labradores, os golden retrievers, os dálmatas, os chow chows, os poodles, os pinchers, a ex do Celso Freitas e outros animais de teta aproveitem tanto quanto nós, Família Martin de Macedo Nascimento, durante toda a minha vida.

A chácara era onde nos reuníamos todos os fins-de-ano para receber o novo ano. Era onde a família tinha mais tempo para ser família durante dez dias, ou uma semana, ou cinco, três, um dia que fosse. Lá a gente se sentia mais família. As tias-mães, que por sua vez são irmãs, cozinhavam juntas e disputavam a comida mais gostosa. E sempre exageravam na quantidade, talvez pelo desejo de uma família ainda maior que aquela. Ou por pensarem em absolutamente todo mundo junto sentado à mesa, mesmo naqueles que não estavam lá. O resultado era uma semana de lentilhada requentada, mas a melhor lentilhada requentada do mundo.

Era na chácara que os primos viravam irmãos e os cunhados, amigos. Onde eu tinha mais tempo de planejar travessuras com o Nando e com o Rodrigo, quando ainda éramos pequeninos. Ou planejar, depois de grande, passar a noite toda acordada, enchendo a cara e jogando cartas com o Nando, mesmo que não desse certo e fossemos derrotados pelo sono às 8h30 da noite.

E a balada era o que menos importava quando a gente tinha o sol batendo na janela logo cedo e o reflexo azulzinho da piscina no teto da sala. O que a gente esperava o ano todo, com uma ansiedade de criança mesmo quando já éramos adultos, era exatamente isso: a bóia-poltrona transparente dentro da piscina, a lata de skol gelada na mão, o cd do Buena Vista no rádio, as vespas sempre picando o pé de um e de outro, o bronzeado bonito que durava até agosto, a vista para o Cristo de Vinhedo.

Foi na piscina da chácara que eu perdi o medo de afundar a cabeça na água e que eu me vi crescer, desde o raso onde não dava pé até o fundo com os ombros de fora. De onde acompanhávamos o grande show pirotécnico da meia dúzia de fogos de Vinhedo, a meia noite de 31 de dezembro.

Na chácara, o sinal de independência era conseguir o direito de sair do quarto onde dormiam os pais para dormir junto às primas já adolescentes. O momento de ouvir conselhos, de saber sobre namorado, espinhas, sutiã e peitinhos. De largar a bóia de braço e a maria-chiquinha do cabelo.
Onde a gente não sabia nenhuma lei que impedia dois corpos de ocuparem o mesmo espaço e cabíamos todos, os sete priminhos (eu, Rodrigo, Nando, Flá, Clau, Márcia e Aninha), em uma única rede.

Os cachorros da Senhora Freitas terão de viver em um território que não é deles e que já foi demarcado muito antes pelos cachorros da família. Em todos esses anos, nenhum deixou de pegar pulga com os vira-latas que andavam soltos pela chácara: Tobby, Bruna, Bianca, Rex, Luke, Scotch, Tica. Até a Tica saiu de Olímpia e enfrentou mais de seis horas de viagem dentro de um fusca bege para conhecer aquele lugar.

Lá, naquele pedaço de terra muito bem localizado, a cinco minutos do centro e na beira da estrada, foi onde pensei ter visto o Cometa Halley e onde a minha prima jura que viu uma bola de fogo maior do que ela (quando ainda era pititica) sobrevoar a casa. Se bem que a Flavinha nunca cresceu e, apesar de ser a mais velha das primas, será sempre a Flavinha. Mas tinha, sem dúvida, o céu com mais estrelas que vimos quando crianças.

A venda da chácara é o tchau às partidas de sinuca na mesa desnivelada que fazia a bolinha pular longe, às aranhas assustadoramente peludas, aos macaquinhos que migravam das matas queimadas da região e se refugiavam nas nossas árvores, aos insetos estranhos e ao balanço de pneu com a corda frouxa prestes a arrebentar.

O adeus à churrasqueira que eu e o Nando nunca conseguíamos acender; aos jogos de tabuleiro que reuniam a família enquanto não podíamos pular na piscina por conta da digestão; ao supermercado 5 estrelas, nosso grande abastecedor de rum Montilla, cerveja, podritos e bolinhas de chocolate; às histórias de terror no sofá lilás.

Aos cupins; aos passeios ao Frango Assado quando era a única opção de diversão da cidade, e depois às baladas furadas onde o ponto final era a agonizante Cachaçaria Água Doce; aos segredos trocados com o Nando e com a Clau, seguidos sempre de um inútil “não conta pra ninguém” – era óbvio que segredo contado na chácara, morria na chácara; às caminhadas até o Cristo que rendiam gargalhadas para o ano inteiro.

É a despedida para a possibilidade da Júlia, do Lucas e de todos os outros herdeiros que vierem, viverem tudo de bom que vivemos. E é a tendência, onde o rico vira classe média e a classe média vira sem-terra. Vendemos nossa terra, que nem minha era, mas era. Pena.